Outros olhares
A maestria do Vinicius aprendiz
Paulo Roberto Pires
De todas as homenagens pelos 90 anos de Vinicius de Moraes - do
espetacular site na internet à edição, luxuosa, do "Cancioneiro", com
textos de Sergio Augusto e documentos inéditos levantados por Maria
Lucia Rangel - uma peça de câmara é desconcertante em sua simplicidade
e intensa e sincera emoção. Trata-se de "O poeta aprendiz", o poema que
Toquinho musicou nos anos 70 e que agora Adriana Calcanhoto, revelada
ótima desenhista, ilustra com delicadeza num álbum da Companhia das
Letrinhas que inclui também o CD com sua versão, personalíssima, para a
canção - além de o próprio Vinicius declamando o texto.
Em julho, na abertura da Festa Literária de Parati, Vinicius foi homenageado da melhor forma: declamação e música. Já às lágrimas com Antonio Cícero tendo redescoberto, pelo menos para mim, a intensidade de "Pátria amada", resisti a Chico Buarque lendo e cantando, à alegria de Gilberto Gil e sua "Formosa". Mas fui pego, de jeito, por Adriana e "O poeta aprendiz". Lembrei, de imediato, que sabia tudo aquilo de cabeça, como uma canção infantil, de tanto que ouvi, menino, o disco em que o poeta e Toquinho comemoravam dez anos de parceria - daquela época também ficou uma das primeiras impressões de tristeza profunda, por conta de "Um homem chamado Alfredo" ("O meu vizinho do lado/Se matou de solidão").
Perdoem a egotrip, mas creio que neste susto e nesta emoção está a perplexidade de uma geração que, nascida na segunda metade dos anos 1960, aprendeu, sabe-se lá com quem ou porquê, a não gostar de Vinicius e também a afastar de si todo tipo de derramamento lírico ou existencial. Celebrar suicídio, loucura e incomunicabilidade, tudo bem. Mulher, amores felizes e a vida, jamais. Por uma irreverência tola, tinha-se Vinicius como compositor e poeta banais, talvez pela espantosa difusão de sua música e literária. Quanto tempo perdido - ou talvez o tempo necessário para curtir tudo isso e, sobretudo, "O poeta aprendiz".
Em julho, na abertura da Festa Literária de Parati, Vinicius foi homenageado da melhor forma: declamação e música. Já às lágrimas com Antonio Cícero tendo redescoberto, pelo menos para mim, a intensidade de "Pátria amada", resisti a Chico Buarque lendo e cantando, à alegria de Gilberto Gil e sua "Formosa". Mas fui pego, de jeito, por Adriana e "O poeta aprendiz". Lembrei, de imediato, que sabia tudo aquilo de cabeça, como uma canção infantil, de tanto que ouvi, menino, o disco em que o poeta e Toquinho comemoravam dez anos de parceria - daquela época também ficou uma das primeiras impressões de tristeza profunda, por conta de "Um homem chamado Alfredo" ("O meu vizinho do lado/Se matou de solidão").
Perdoem a egotrip, mas creio que neste susto e nesta emoção está a perplexidade de uma geração que, nascida na segunda metade dos anos 1960, aprendeu, sabe-se lá com quem ou porquê, a não gostar de Vinicius e também a afastar de si todo tipo de derramamento lírico ou existencial. Celebrar suicídio, loucura e incomunicabilidade, tudo bem. Mulher, amores felizes e a vida, jamais. Por uma irreverência tola, tinha-se Vinicius como compositor e poeta banais, talvez pela espantosa difusão de sua música e literária. Quanto tempo perdido - ou talvez o tempo necessário para curtir tudo isso e, sobretudo, "O poeta aprendiz".
Em 81 versos curtos, Vinicius escreveu, em 1958, o que é uma autobiografia de todo mundo que, um dia, de uma forma ou de outra, viu na escrita (seja lá de que forma) uma saída - ou lenitivo - para os demais perigos, medos e angústias desta vida. Porta de saída que nada tem de óbvia, que fica no fim de um labirinto de escolhas, renúncias, incontáveis decepções, alegrias escassas mas incomparáveis. Na vida do garoto brincando nas praias da Ilha do Governador, Vinicius evocava a própria infância numa espécie de condensação poética de um romance de formação - narrativa das escolhas e experiências através das quais alguém se tornou quem é.
O menino "valente e caprino", de dez anos, leva uma vida normal: com "asas nos pés" corre, brinca, mergulha "de anjo" sem fazer barulho, joga futebol, brinca com bodoque. Na lista de seus tesouros, recolhidos nas areias e no chão, estão as bugigangas que crianças transformam em jóias e, também, poucos e bons achados poéticos: "No fundo do mar/Sabia encontrar/Estrelas, ouriços/E até deixa-dissos". Na figura feminina, fosse ela ama ("nos jogos de cama"), criada ("Varrendo as escadas"), prima ou "artista/das cine-revistas", encontra a razão de sua escrita: "Amava a mulher/Até não mais poder. /Por isso fazia/Seu grão de poesia". Vivendo, simplesmente, o menino descobre seu caminho, vislumbra o destino numa genial inflexão de Vinicius: "E achava bonita/A palavra escrita./Por isso sofria./Da melancolia/De sonhar o poeta/Que um sabe um dia/Poderia ser."
Publicado originalmente no livro "Para viver um grande amor", o poema ficou com 48 versos na versão polida por Vinicius para melhor se integrar à ótima melodia de Toquinho. A dupla gravou-a em 1971, em "Toquinho e Vinicius". Ao reinterpretá-la como cantora e desenhista, pensando no público infantil, Adriana Calcanhoto parece recolocá-la em seu elemento, a simplicidade complexa da infância, falando direto às crianças e, de forma desconcertante, aos adultos.
A viagem dos desenhos de Adriana, e de sua interpretação hipnótica, faz pensar em "O poeta aprendiz" como o simétrico perfeito a "O haver", poema crepuscular que Vinicius publicou no "Pasquim" nos anos 70 e gravou, em 1977, em sua "Antologia poética". Neste doloroso balanço poético e existencial, uma espécie de resultado daquele caminho iniciado nas areias da praia do Cocotá: "Resta essa imobilidade, essa economia de gestos/Essa inércia cada vez maior diante do Infinito/ Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível/Essa irredutível recusa à poesia não vivida (...) /Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo/Infantil de ter pequenas coragens". Entre os dois momentos cabe uma vida e uma obra e também, ou sobretudo, uma doce afronta aos vazios e viciantes elogios de maturidade, equilíbrio e contenção.
Ainda sobre a cassação de Vinicius de Moraes
Carlos Castello Branco
Recebi esta carta da irmã de Vinicius de Moraes, Laetitia C. de Moraes Vasconcellos:
"Antecipando-se à carta que eu estava por enviar-lhe com relação à primeira nota de sua coluna o JB sobre Vinicius, o Sr. Rui Castro retificou parte das informações publicadas a respeito da saída de Vinicius da carreira diplomática. Servirá esta, agora, para dar-lhe mais detalhes do que aconteceu, então.
Segundo o que o próprio Vinicius, meu irmão, relatou à minha irmã Lygia, antes mesmo da edição do AI-5, ele soubera, através de amigos no Itamarati, que o presidente enviara a famosa nota ao então ministro Magalhães Pinto, vazada nos seguintes termos: 'Demita-se esse vagabundo'. Antes de prosseguir no assunto, devo explicar que, naquela época, eu trabalhava na FAO-Nações Unidas e tinha muito contato com o Itamarati, onde nunca encontrava Vinicius. Por isso, em certa ocasião, perguntei-lhe por que não comparecia regularmente à Casa, e sua resposta foi: 'Já me apresentei três vezes (depois de sua volta do Uruguai) ao secretário geral para ser designado para alguma função. Nada foi feito e eu me recuso a ficar andando pelos corredores, sem nada para fazer e até sem ter mesa e cadeira para mim.'
De acordo com um amigo de Vinicius na Casa (leia-se Itamarati), a quem o ministro transmitira o recado e pedira o levantamento da carreira dele, foi feito um relatório em que se destacara a atuação de Vinicius em Paris (onde a casa dele era considerada como que uma segunda Embaixada do Brasil e de onde, através de sua amizade com Sacha Gordine, nascera o projeto e o filme Orfeu do Carnaval) bem como o quanto ele fizera no Uruguai para divulgar a cultura e a música popular brasileira. No Uruguai, pude eu mesma constatar, quando meu marido foi ali designado como embaixador do Brasil no período de 1971 a 1974, a marca da presença de Vinicius no plano cultural e as inúmeras amizades que havia conquistado quando ali esteve como cônsul brasileiro nos idos de 1960. Eu costumava dizer a Arnaldo, meu marido, que me dava mais prestígio em Montevidéu ser irmã de Vinicius do que, propriamente, ser embaixatriz.
Pelo que soube por Lygia (eu me encontrava, então, com meu marido, em posto, no Egito), o presidente lera o relatório e o deixara de lado para decisão futura. Infelizmente, e a despeito dos serviços prestados ao país, o presidente teve por bem, eu diria por mal, cassar Vinicius, demitindo-o da carreira. A notícia chegou-lhe através de um amigo diplomata, quando ele, Vinicius, se encontrava em casa de minha mãe, já falecida, e habitada por Lygia. Vinicius ficou muito abatido, pois gostava da carreira, mas não chorou não. Naquele mesmo dia, recebeu telefonemas de dois amigos, Lauro Escorel e Carlos Jacinto de Barros, que lhe vieram hipotecar solidariedade.
No que diz respeito à volta dele à carreira, foi apenas por insistência de minha irmã, procuradora dele, que Vinicius, depois da anistia, permitiu que ela providenciasse sua reintegração ao Itamarati (uma maneira, segundo ela, de limpar sua folha de serviços) e apresentou, logo a seguir, seu pedido de demissão.
Quanto à lenda (e há tantas sobre Vinicius) de ter recebido a notícia na banheira, deve-se, creio eu, ao fato de ele gostar de mergulhado a meio na água, escrever seus artigos e letras de música em máquina colocada sobre uma tábua atravessada na banheira. Era também assim que muitas vezes recebia alguns de seus amigos.
E pela (espero) última vez (já o fizemos tantas vezes), queria deixar claro que Vinicius é Vinicius de Moraes - e nada mais. Foi registrado como Marcus Vinicius por meu pai, tendo Vinicius, já no ginásio, abandonado o Marcus, conforme consta no livro próprio do Cartório do Registro, passando a assinar-se apenas Vinicius de Moraes (xerox da identidade dele anexo). A lenda, mais uma, de ele chamar-se Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes deve-se a uma brincadeira, em verso, de Manuel Bandeira depois de saber que Vina (seu apelido de família) tivera inicialmente o nome de Marcus Vinicius e que ele descendia, por parte materna, da família Burlamaqui dos Santos Cruz e, do lado paterno, de Alexandre José de Mello Moraes, médico e historiador, pai de nossa avó. O Bandeira misturou essas informações e compôs esse nome, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes, que o persegue até hoje.
Espero que, com esta carta, fique esclarecido todo esse assunto e ponho-me, juntamente com minha irmã Lygia, à sua disposição para qualquer informação adicional.
Ao desculpar-me por carta tão longa, gostaria de dizer-lhe o quanto apreciamos, meu marido e eu, suas crônicas no JB, pela clareza e dignidade com que trata assuntos outros de tanta relevância para o Brasil. Sua admiradora sincera, Laetitia C. de Moraes Vasconcellos."
"Antecipando-se à carta que eu estava por enviar-lhe com relação à primeira nota de sua coluna o JB sobre Vinicius, o Sr. Rui Castro retificou parte das informações publicadas a respeito da saída de Vinicius da carreira diplomática. Servirá esta, agora, para dar-lhe mais detalhes do que aconteceu, então.
Segundo o que o próprio Vinicius, meu irmão, relatou à minha irmã Lygia, antes mesmo da edição do AI-5, ele soubera, através de amigos no Itamarati, que o presidente enviara a famosa nota ao então ministro Magalhães Pinto, vazada nos seguintes termos: 'Demita-se esse vagabundo'. Antes de prosseguir no assunto, devo explicar que, naquela época, eu trabalhava na FAO-Nações Unidas e tinha muito contato com o Itamarati, onde nunca encontrava Vinicius. Por isso, em certa ocasião, perguntei-lhe por que não comparecia regularmente à Casa, e sua resposta foi: 'Já me apresentei três vezes (depois de sua volta do Uruguai) ao secretário geral para ser designado para alguma função. Nada foi feito e eu me recuso a ficar andando pelos corredores, sem nada para fazer e até sem ter mesa e cadeira para mim.'
De acordo com um amigo de Vinicius na Casa (leia-se Itamarati), a quem o ministro transmitira o recado e pedira o levantamento da carreira dele, foi feito um relatório em que se destacara a atuação de Vinicius em Paris (onde a casa dele era considerada como que uma segunda Embaixada do Brasil e de onde, através de sua amizade com Sacha Gordine, nascera o projeto e o filme Orfeu do Carnaval) bem como o quanto ele fizera no Uruguai para divulgar a cultura e a música popular brasileira. No Uruguai, pude eu mesma constatar, quando meu marido foi ali designado como embaixador do Brasil no período de 1971 a 1974, a marca da presença de Vinicius no plano cultural e as inúmeras amizades que havia conquistado quando ali esteve como cônsul brasileiro nos idos de 1960. Eu costumava dizer a Arnaldo, meu marido, que me dava mais prestígio em Montevidéu ser irmã de Vinicius do que, propriamente, ser embaixatriz.
Pelo que soube por Lygia (eu me encontrava, então, com meu marido, em posto, no Egito), o presidente lera o relatório e o deixara de lado para decisão futura. Infelizmente, e a despeito dos serviços prestados ao país, o presidente teve por bem, eu diria por mal, cassar Vinicius, demitindo-o da carreira. A notícia chegou-lhe através de um amigo diplomata, quando ele, Vinicius, se encontrava em casa de minha mãe, já falecida, e habitada por Lygia. Vinicius ficou muito abatido, pois gostava da carreira, mas não chorou não. Naquele mesmo dia, recebeu telefonemas de dois amigos, Lauro Escorel e Carlos Jacinto de Barros, que lhe vieram hipotecar solidariedade.
No que diz respeito à volta dele à carreira, foi apenas por insistência de minha irmã, procuradora dele, que Vinicius, depois da anistia, permitiu que ela providenciasse sua reintegração ao Itamarati (uma maneira, segundo ela, de limpar sua folha de serviços) e apresentou, logo a seguir, seu pedido de demissão.
Quanto à lenda (e há tantas sobre Vinicius) de ter recebido a notícia na banheira, deve-se, creio eu, ao fato de ele gostar de mergulhado a meio na água, escrever seus artigos e letras de música em máquina colocada sobre uma tábua atravessada na banheira. Era também assim que muitas vezes recebia alguns de seus amigos.
E pela (espero) última vez (já o fizemos tantas vezes), queria deixar claro que Vinicius é Vinicius de Moraes - e nada mais. Foi registrado como Marcus Vinicius por meu pai, tendo Vinicius, já no ginásio, abandonado o Marcus, conforme consta no livro próprio do Cartório do Registro, passando a assinar-se apenas Vinicius de Moraes (xerox da identidade dele anexo). A lenda, mais uma, de ele chamar-se Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes deve-se a uma brincadeira, em verso, de Manuel Bandeira depois de saber que Vina (seu apelido de família) tivera inicialmente o nome de Marcus Vinicius e que ele descendia, por parte materna, da família Burlamaqui dos Santos Cruz e, do lado paterno, de Alexandre José de Mello Moraes, médico e historiador, pai de nossa avó. O Bandeira misturou essas informações e compôs esse nome, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes, que o persegue até hoje.
Espero que, com esta carta, fique esclarecido todo esse assunto e ponho-me, juntamente com minha irmã Lygia, à sua disposição para qualquer informação adicional.
Ao desculpar-me por carta tão longa, gostaria de dizer-lhe o quanto apreciamos, meu marido e eu, suas crônicas no JB, pela clareza e dignidade com que trata assuntos outros de tanta relevância para o Brasil. Sua admiradora sincera, Laetitia C. de Moraes Vasconcellos."
Vinicius de Moraes: poeta e letrista
Susana Moraes
Este é um depoimento com algumas considerações sobre a trajetória de
Vinicius e as diversas combinações que deram a ele um papel tão
importante na cultura brasileira e especialmente na sua música popular.
Participei de perto de muitos pedaços dessa trajetória, em primeiro
lugar, porque sou sua filha mais velha, e depois, por temperamento e
eleição. Já adulta, e em diferentes épocas, fui ficando amiga de alguns
dos seus parceiros, sobretudo do Tom. Hoje em dia, com 62 anos verifico
que tive e tenho mais amigos músicos do que de qualquer outra profissão
inclusive cinema que é o que eu de vez em quando faço. Isso para dizer
que Vinicius, a Bossa Nova, a Música Popular Brasileira e afins são
temas de infindas conversas noite adentro com músicos e gente ligada em
música de várias praias.
O que sempre me interessou nessa riqueza que é a nossa música popular fica bem exemplificado na pessoa de Vinicius pelas origens. Vinicius de Moraes nasceu filho da pequena classe media carioca. Pelo lado do pai, de uma pequena classe média culta escritores, professores, um folclorista, um que fez um dicionário, uns Moraes pobres oriundos, dizem, de sangues mais ou menos azulados suecos e alemães. O meu avô Clodoaldo, pai de Vinicius, era 25 anos mais velho do minha avó e tinha sido seu professor de violino. Era um homem fino, delicado, boníssimo, pequeno funcionário público, latinista, poeta de gaveta pós-parnasiano, amigo de Olavo Bilac. Tocava violino, piano, sabia música. Já pelo lado de minha avó Lydia, uma família um pouco mais abastada e completamente inculta. Sidney Magal é primo de Vinicius e meu por conseqüência, de segundo grau. Isso é o lado dos Santos Cruz. Incultos mas muito animados, boêmios, namoradores, tocadores de violão e cavaquinho. Tudo de ouvido, tudo swing. Sempre tinha seresta. O tio Niboca, irmão mais moço da minha avó, quase da idade de Vinicius e durante a adolescência seu amigo inseparável além de tocar violão e cavaquinho fazia de vez em quando umas
canções e até teve uma, ³Diz que tem², gravada por Carmen Miranda. Também tinha o tio Henriquinho, delegado, que numa história famosa na família foi pego pelo chefe de polícia na sua sala da delegacia tocando violão e bebendo com as putas que deveriam estar presas.
Então as tradições da casa dos meus avós eram essas: minha avó tocava bem piano e cantava com uma voz alta muito afinadinha. Nos domingos depois de um almoço carioca caprichado Dona Lydia sentava no piano e aí rolavam os choros, as valsas e as modinhas. Vinicius tocava mal violão com desenvoltura e sempre aparecia com novidade, um sambinha engraçado ou uma balada inglesa, alguma coisa que ninguém conhecia. Suas escolhas tinham humor e mesmo as canções mais sentimentais ele cantava com um sorrisinho nos lábios. Isso foi acontecendo em Botafogo, na Ilha do Governador e depois na Gávea, onde eu nasci. Isso foi a formação musical básica de Vinicius.
Vou cortar agora para alguns anos depois, quando já morávamos em Los Angeles. Vinicius foi para lá como diplomata, era seu primeiro posto Los Angeles e ali, por volta de 1944 ou 1945 ele se apaixonou por jazz. Nessa época, além de diplomata, ele escrevia eu acho que para o Diário de Notícias, para um desses jornais da época, crônicas de cinema e crônicas sobre jazz. Lá em Los Angeles, travou amizade com um sujeito chamado Neshui Ertegun, que mais tarde criou a Atlantic Records, um selo importante só de jazz. Neshui também era apaixonado e tinha uma lojinha onde vendia os discos, muito freqüentada por músicos. A música na nossa casa nos Estados Unidos era basicamente jazz e essa paixão de Vinicius se desenvolveu. Eu tinha uns 6, 7 anos e tem algumas improvisacões de Charlie Parker que até hoje sei de cor, nota por nota. Lembro de irmos algumas vezes a New Orleans, uma vez especialmente para ouvir Jelly Roll Morton, de quem ele se tornou amigo. É claro que também se ouvia Música Popular Americana, Gershwin, Frank Sinatra mas basicamente era jazz.
Nessa época alguns músicos brasileiros que moravam em Los Angeles também foram através de Vinicius se aproximando do jazz inclusive os músicos do Bando da Lua que trabalhavam com Carmen Miranda. Carmen freqüentava a nossa casa e com ela, Aluísio de Oliveira, que era o arranjador, compositor bissexto e namorado dela durante um tempo. Aluísio foi se interessando por jazz cada vez mais e muitos anos depois, de volta ao Brasil fundou o selo Elenco onde produziu uma série de discos de Bossa Nova.
Quando Vinicius voltou para o Brasil, no começo dos anos 50 essa mistura de informaões se encontrou com informações parecidas de Tom Jobim, de João Gilberto e de alguns outros jovens compositores. Todos tinham ligações profundas com Música Popular Brasileira e também tinham ouvido Chet Baker. O primeiro encontro foi com Tom na peça Orfeu da Conceição. Nesse primeiro momento as músicas ainda não se caracterizam pela batida de João Gilberto, isso veio logo depois, mas já tem a combinação do ³popular² com a cultura ³erudita². Nisso Orfeu da Conceição é exemplar, uma peça de teatro escrita em versos baseada no mito grego de Orfeu mas ambientada no morro carioca representada por negros. São vertentes que se encontraram num determinado momento histórico, politico e cultural dos anos 50. Antes de eu conhecer pessoalmente João Gilberto, com 15, 16 anos, Vinicius disse assim: ³ apareceu aí um cara que toca um violão genial, um músico completamente original, ele vai acompanhar Elizete no disco² o disco era Canção do Amor Demais. Ele ficou deslumbrado com João Gilberto desde o primeiro minuto.
Acredito que uma das coisas importantes na relação de Vinicius com Tom e João Gilberto, além dos talentos individuais e identificações, era o fato de ele ser um poeta publicado, reconhecido dentro da literatura brasileira e latino-americana. Isso dava uma espécie de aval para o que estava sendo produzido. Pela primeira vez, acho que no mundo, isso é, no mundo ocidental, um poeta sério passou sistematicamente a escrever letras de música, dedicar-se principalmente a isso. Tom era de uma família de professores, ficava impressionado com o fato de Vinicius falar línguas, ter estudado em Oxford.
No primeiro instante a Bossa Nova, e Vinicius em particular foram muito criticados. De um lado por uma ala da ³literatura séria² que achava aquilo um rebaixamento lamentável do seu talento poético e de outro lado pela turma da pureza musical, das raízes intocáveis. Essa corrente é forte, empedernida e atravessa os tempos. Pixinguinha na sua época foi criticado porque gostava de jazz depois naturalmente a Bossa Nova pela sua apropriação da música popular americana seguido da Tropicália pela sua absorção do rock, dos instrumentos eletrificados e à valorização de manisfestações populares consideradas deselegantes. Essa vontade conservadora de querer que as coisas parem no tempo, puras, sem misturas. Mas o resultado dessas misturas foi uma obra universal e uma imagem dos brasileiros para si mesmos e para todo o mundo completamente nova. Esses sons e essas letras eram tão sofisticados quanto Cole Porter ou Duke Elington e qualquer um podia ver isso. A Bossa Nova é, de certa forma e em grande escala, a concretização de 22: jantamos os gringos para abrir um espaço interno maior. Como diz Antonio Cicero raízes são importantíssimas mas o que faz diferença são as antenas. Para a minha geração foi como encontrar sua própria dicção. Olha, a primeira vez que eu ouvi João Gilberto cantar eu pensei assim: é isso aí.
Bem, isso aí é só um pedacinho dessa história.
O que sempre me interessou nessa riqueza que é a nossa música popular fica bem exemplificado na pessoa de Vinicius pelas origens. Vinicius de Moraes nasceu filho da pequena classe media carioca. Pelo lado do pai, de uma pequena classe média culta escritores, professores, um folclorista, um que fez um dicionário, uns Moraes pobres oriundos, dizem, de sangues mais ou menos azulados suecos e alemães. O meu avô Clodoaldo, pai de Vinicius, era 25 anos mais velho do minha avó e tinha sido seu professor de violino. Era um homem fino, delicado, boníssimo, pequeno funcionário público, latinista, poeta de gaveta pós-parnasiano, amigo de Olavo Bilac. Tocava violino, piano, sabia música. Já pelo lado de minha avó Lydia, uma família um pouco mais abastada e completamente inculta. Sidney Magal é primo de Vinicius e meu por conseqüência, de segundo grau. Isso é o lado dos Santos Cruz. Incultos mas muito animados, boêmios, namoradores, tocadores de violão e cavaquinho. Tudo de ouvido, tudo swing. Sempre tinha seresta. O tio Niboca, irmão mais moço da minha avó, quase da idade de Vinicius e durante a adolescência seu amigo inseparável além de tocar violão e cavaquinho fazia de vez em quando umas
canções e até teve uma, ³Diz que tem², gravada por Carmen Miranda. Também tinha o tio Henriquinho, delegado, que numa história famosa na família foi pego pelo chefe de polícia na sua sala da delegacia tocando violão e bebendo com as putas que deveriam estar presas.
Então as tradições da casa dos meus avós eram essas: minha avó tocava bem piano e cantava com uma voz alta muito afinadinha. Nos domingos depois de um almoço carioca caprichado Dona Lydia sentava no piano e aí rolavam os choros, as valsas e as modinhas. Vinicius tocava mal violão com desenvoltura e sempre aparecia com novidade, um sambinha engraçado ou uma balada inglesa, alguma coisa que ninguém conhecia. Suas escolhas tinham humor e mesmo as canções mais sentimentais ele cantava com um sorrisinho nos lábios. Isso foi acontecendo em Botafogo, na Ilha do Governador e depois na Gávea, onde eu nasci. Isso foi a formação musical básica de Vinicius.
Vou cortar agora para alguns anos depois, quando já morávamos em Los Angeles. Vinicius foi para lá como diplomata, era seu primeiro posto Los Angeles e ali, por volta de 1944 ou 1945 ele se apaixonou por jazz. Nessa época, além de diplomata, ele escrevia eu acho que para o Diário de Notícias, para um desses jornais da época, crônicas de cinema e crônicas sobre jazz. Lá em Los Angeles, travou amizade com um sujeito chamado Neshui Ertegun, que mais tarde criou a Atlantic Records, um selo importante só de jazz. Neshui também era apaixonado e tinha uma lojinha onde vendia os discos, muito freqüentada por músicos. A música na nossa casa nos Estados Unidos era basicamente jazz e essa paixão de Vinicius se desenvolveu. Eu tinha uns 6, 7 anos e tem algumas improvisacões de Charlie Parker que até hoje sei de cor, nota por nota. Lembro de irmos algumas vezes a New Orleans, uma vez especialmente para ouvir Jelly Roll Morton, de quem ele se tornou amigo. É claro que também se ouvia Música Popular Americana, Gershwin, Frank Sinatra mas basicamente era jazz.
Nessa época alguns músicos brasileiros que moravam em Los Angeles também foram através de Vinicius se aproximando do jazz inclusive os músicos do Bando da Lua que trabalhavam com Carmen Miranda. Carmen freqüentava a nossa casa e com ela, Aluísio de Oliveira, que era o arranjador, compositor bissexto e namorado dela durante um tempo. Aluísio foi se interessando por jazz cada vez mais e muitos anos depois, de volta ao Brasil fundou o selo Elenco onde produziu uma série de discos de Bossa Nova.
Quando Vinicius voltou para o Brasil, no começo dos anos 50 essa mistura de informaões se encontrou com informações parecidas de Tom Jobim, de João Gilberto e de alguns outros jovens compositores. Todos tinham ligações profundas com Música Popular Brasileira e também tinham ouvido Chet Baker. O primeiro encontro foi com Tom na peça Orfeu da Conceição. Nesse primeiro momento as músicas ainda não se caracterizam pela batida de João Gilberto, isso veio logo depois, mas já tem a combinação do ³popular² com a cultura ³erudita². Nisso Orfeu da Conceição é exemplar, uma peça de teatro escrita em versos baseada no mito grego de Orfeu mas ambientada no morro carioca representada por negros. São vertentes que se encontraram num determinado momento histórico, politico e cultural dos anos 50. Antes de eu conhecer pessoalmente João Gilberto, com 15, 16 anos, Vinicius disse assim: ³ apareceu aí um cara que toca um violão genial, um músico completamente original, ele vai acompanhar Elizete no disco² o disco era Canção do Amor Demais. Ele ficou deslumbrado com João Gilberto desde o primeiro minuto.
Acredito que uma das coisas importantes na relação de Vinicius com Tom e João Gilberto, além dos talentos individuais e identificações, era o fato de ele ser um poeta publicado, reconhecido dentro da literatura brasileira e latino-americana. Isso dava uma espécie de aval para o que estava sendo produzido. Pela primeira vez, acho que no mundo, isso é, no mundo ocidental, um poeta sério passou sistematicamente a escrever letras de música, dedicar-se principalmente a isso. Tom era de uma família de professores, ficava impressionado com o fato de Vinicius falar línguas, ter estudado em Oxford.
No primeiro instante a Bossa Nova, e Vinicius em particular foram muito criticados. De um lado por uma ala da ³literatura séria² que achava aquilo um rebaixamento lamentável do seu talento poético e de outro lado pela turma da pureza musical, das raízes intocáveis. Essa corrente é forte, empedernida e atravessa os tempos. Pixinguinha na sua época foi criticado porque gostava de jazz depois naturalmente a Bossa Nova pela sua apropriação da música popular americana seguido da Tropicália pela sua absorção do rock, dos instrumentos eletrificados e à valorização de manisfestações populares consideradas deselegantes. Essa vontade conservadora de querer que as coisas parem no tempo, puras, sem misturas. Mas o resultado dessas misturas foi uma obra universal e uma imagem dos brasileiros para si mesmos e para todo o mundo completamente nova. Esses sons e essas letras eram tão sofisticados quanto Cole Porter ou Duke Elington e qualquer um podia ver isso. A Bossa Nova é, de certa forma e em grande escala, a concretização de 22: jantamos os gringos para abrir um espaço interno maior. Como diz Antonio Cicero raízes são importantíssimas mas o que faz diferença são as antenas. Para a minha geração foi como encontrar sua própria dicção. Olha, a primeira vez que eu ouvi João Gilberto cantar eu pensei assim: é isso aí.
Bem, isso aí é só um pedacinho dessa história.
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